A superficialidade da avaliação política pela cultura trash actual e as eleições presidenciais americanas

Foi por acaso que vi na televisão o “W.” de Oliver Stone sobre o Bush filho e a sua presidência. Filme bem estruturado em duas épocas, a presidência do Bush pai e a presidência do Bush filho, apresentadas em paralelo. Roda à volta da guerra do Iraque e destaca uma característica básica da personagem W, a sua teimosia. Oliver Stone utiliza a linguagem do cinema mais próxima do documentário porque o seu objectivo é levar-nos a conhecer melhor a realidade, a verdade dos factos, e as diversas perspectivas. Não é tarefa fácil.

W surge aqui como alguém pouco dotado, emocionalmente imaturo, na fase de afirmação em relação ao pai. É para impressionar o pai que lhe segue os passos, ultrapassando tudo e todos para atingir esse fim. E vai mais longe, julga ele, continuando o caminho que o pai deixou a meio. É interessante acompanharmos o percurso político de W até à candidatura à presidência, percurso que é facilitado pelo facto de ser filho do Presidente. Nada o detém, nem a resistência dos pais que lhe pedem para esperar pela candidatura do irmão, nem a sua própria inabilidade. Vale a pena rever as cenas do treino político, dos ensaios das respostas aos jornalistas e como se proteger de perguntas incómodas, como favorecer a sua imagem pública, etc. W revela não ter perfil para a carreira política, mas motivação não lhe falta. Percebe a política na sua perspectiva mais superficial, o poder de tomar decisões, de concretizar um plano. Poder-se-ia confundir esta postura com a de um homem prático, mas é a de um homem irresponsável e inconsequente.

W é um homem de acção, não de reflexão. O problema é que uma acção não reflectida é uma acção que tem sempre maus resultados. Na verdade, nem tudo depende de um Presidente. As circunstâncias podem ou não ser favoráveis à possibilidade de manifestação desse poder alucinado. É o que vemos acontecer no filme: dá-se um jeito às circunstâncias, cria-se um motivo credível, e avança-se sem esperar pela sua confirmação. A guerra do Iraque revelou-se um desastre de enorme dimensão. Vemos W a titubear uma explicação numa conferência de imprensa, já na fase final da sua presidência. Numa qualquer outra época, este Presidente teria sido responsabilizado de forma muito mais severa. Mas vivemos numa época também ela superficial e inconsequente em que os gestores políticos não são avaliados nem responsabilizados pelos seus erros.

Sim, vivemos numa época estranha, da maior superficialidade, o que torna os cidadãos mais vulneráveis, pois já não sabem em quem confiar. Nada tem consequências, tudo pode ser relativizado num qualquer show televisivo e esquecido imediatamente no tempo veloz e fragmentado da cultura trash. Já não se trata apenas da arte-entretenimento, mas da política-entretenimento. Na política-entretenimento tudo é triturado e amassado em público, no meio de gargalhadas sonoras de curta duração, e depois atirado para o lixo, pois é preciso dar lugar à próxima vítima da piada para alimentar as audiências.

Clint Eastwood soa-nos tão desactualizado como Jon Stewart o pinta num daily show recente porque o seu discurso vem lembrar valores que colidem com os actuais. Avaliação de um político pelos seus maus resultados?, por não ter cumprido as promessas?, pelas suas contradições gritantes como ser o guardião da paz e permanecer no Afeganistão ou da prática ecológica e passear-se num jacto? Ou questões tão chatas como o desemprego, os fracos resultados na economia, a dívida pública astronómica?

Obama respondeu a Clint Eastwood de forma inteligente, mas apenas à questão superficial da cadeira e do seu ocupante. Jon Stewart no daily show mostra-nos um Clint Eastwood no plano dos idosos rabujentos. No entanto, estas questões vão aparecer mais cedo ou mais tarde no debate político. Nem tudo pode ser relativizado pelo entertainment por mais lúcido ou inteligente que seja, como é o de Jon Stewart. Um dia destes as pessoas vão começar a questionar-se sobre a manipulação em que se deixaram enredar. Um dia destes as pessoas começarão a querer obter respostas claras sobre as questões fundamentais das suas vidas. Um dia destes as pessoas vão perceber que as análises superficiais que tudo relativizam não são satisfatórias. Um dia destes as pessoas vão distanciar-se de uma cultura que trata os valores essenciais da vida como um produto de consumo.

Obama está em sintonia com a cultura dominante actual, daí o sucesso do seu marketing político, e daí também a ressonância com os cidadãos das novas formas de organização familiar e social. Tudo bem, é um facto que a América mudou. Aliás, já tinha mudado quando Obama andava a apregoar a mudança. Digamos que Obama soube surfar a onda, as circunstâncias favoráveis. Mas é um erro pensar que a América de que Clint Eastwood nos fala deixou de existir, porque essa é uma visão superficial. E mesmo que a superficialidade esteja na moda, o sucesso da gestão presidencial vai depender da percepção da complexidade cultural da grande comunidade que é a América e dos desafios que enfrenta no grande plano.

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