‘Eat Shit and Survive’

Estar em casa com uma criança adoentada dá-me para isto: por-me aos pulos para grande educadora do povo. Pelo que aqui vai um bocadinho da minha dissertação de mestrado – leitura compulsória para todos os que andam no meu blogue – sobre a nostalgia da época maoista que varreu a China na última década do século XX. Ou, como os amigos lhe chamam, ‘the Mao craze’. Um subcapítulo de um capítulo com intitulado «’Eat Shit and Survive’: Ondas de choque da Revolução Cultural».

Ah: ‘xia xiang’ é o petit nom de ‘Shang shan, xia xiang’ (上山下乡) – ‘Subir à Montanha, Descer à Aldeia’ – movimento que levou, durante a Revolução Cultural, cerca de 17 milhões de jovens das cidades chinesas para as zonas rurais, para serem devidamente educados no fervor revolucionário pelos camponeses (que os jovenzinhos depois vieram a descobrir serem uns tremendos reacionários que não gostavam nada das ideias coletivistas radicais de Mao, mas isso é outra história.) E ‘zhiqing’ é o nome por que ficaram conhecidos os ditos jovens citadinos – os zhishi qingnian (知识青年), literalmente jovens educados.

Nostalgia dos anos 1990

Nos anos 90 do século XX, na China, quando já se sentiam os efeitos económicos e sociais das reformas de Deng Xiaoping e das mudanças que o capitalismo havia trazido, surgiu uma nova forma de tornar presente a RC: a nostalgia dos antigos zhiqing e a mercantilização da memorabilia da RC e, sobretudo, de Mao. Como explica Guobin Yang (2003: 267), esta “onda de nostalgia” foi espoletada pela exposição inaugurada em 25 de novembro de 1990, em Beijing, intitulada “A Nossa Ligação Espiritual ao Solo Negro – uma Exposição Retrospetiva sobre os Jovens Educados de Beidahuang” e que foi visitada por 150.000 pessoas, maioritariamente antigos zhiqing. Exposições semelhantes repetiram-se por todo o país durante essa década.

Mas não só. Restaurantes decorados ao estilo dos anos 1960 e 1970 foram abertos e serviam pratos que emulavam a alimentação dos zhiqing durante o xia xiang. Lançaram-se discos de músicas e canções alusivas ao tempo da revolução cultural. Publicaram-se diários, cartas e poemas escritos pelos jovens “rustificados”, bem como os conjuntos de fotografias que tinham tirado aos seus amigos. As agências turísticas organizavam viagens para grupos que queriam regressar por uns dias às quintas e às aldeias onde haviam sido colocados durante o xia xiang.

Yang caracteriza em quatro pontos esta vaga nostálgica que percorreu alguns chineses nos anos 1990:
1) Foi um fenómeno que afetou apenas os que eram jovens durante a RC e, dentro destes, os abrangidos pelo xia xiang. Experiências como pertencer aos GV não provocaram sentimentos nostálgicos.
2) Foi um fenómeno cultural de massas e da generalidade das classes sociais, ao contrário da shanghen wenxue que, considera Yang, fora um fenómeno de elites.
3) Foi um fenómeno espontâneo, sem organização formal, assente em associações cívicas.
4) Tinha uma elevada intensidade emocional, com numerosos abraços dos antigos amigos que se reencontravam, com lágrimas abundantes com as histórias partilhadas que se contavam, com trocas de fotografias antigas e repetidas expressões nas pequenas obras publicadas como “«amor profundo», «alegria inesquecível», «anos de sofrimento e alegria», «sentir falta do passado», «reminiscências em lágrimas» e por aí” (idem: 271).

A estas quatro características poderíamos acrescentar o elemento identitário da nostalgia, através, como refere Bryant (2005) da lembrança de experiências partilhadas: “Os eventos dramáticos da Revolução Cultural são sem dúvida um ponto para os indivíduos se identificarem entre si e descobrirem um sentimento de solidariedade numa história pessoal comum” (Bryant, 2005: 162).

A nostalgia é, por fim, uma reação ao status quo da década de 1990 na China. É, portanto, tanto uma forma de lidar com o presente de então como de valorizar o passado. A reforma capitalista de Deng Xiaoping já se fazia sentir e os antigos zhiqing situaram-se nos extremos opostos quanto aos benefícios que conseguiram retirar da China capitalista. Uma minoria de antigos zhiqing parece ter encontrado na experiência a tenacidade para tentar melhorar a sua situação, e os recursos para mais tarde lidar com as adversidades da vida e vencer. Davies (2005) aponta-lhes o espírito resistente e resiliente que lhes permitiu adotar o capitalismo, e Zhou e Hou (1999) notam a maior propensão para o risco dos que viveram o xia xiang. No entanto, muitos outros nunca se recompuseram dos anos que perderam nas quintas e nas aldeias. Alguns zhiqing tornaram-se os exemplos de sucesso económico das reformas capitalistas e muitos mais tornaram-se os deserdados da era da reforma.

A nostalgia está estreitamente ligada ao insucesso desta geração de zhiqing nos anos 1990. Como esta é também a geração a que pertencem Rae Yang, Ting-xing Ye e Anchee Min, é conveniente fazer o ponto da situação da vida desta geração, nesta década e dentro da China. Porque foi também para escapar a este destino que Rae, Anchee e Ting-xing emigraram.

Privados de uma educação formal nas décadas de 1960 e 1970, que terminava antes de tempo para que os jovens fossem enviados para o campo, na década de 1990 os antigos zhiqing estavam particularmente mal equipados para competirem pelos postos de trabalho das fábricas capitalistas. Assim, esta geração de zhiqing foi a grande afetada pelo desemprego na última década do século XX . Um antigo zhiqing descreve desta forma a vida da sua geração:
“Crescemos durante os três anos de dificuldades [GSF] e perdemos a oportunidade de uma educação quando fomos enviados para o campo durante a Revolução Cultural. A maioria dos zhiqing casou tarde, e quando quisemos filhos, o governo começou o planeamento familiar e pudemos ter apenas um. Agora somos de meia idade, o nosso filho está na escola, e nós estamos desempregados e não temos dinheiro.” (crf. Davies, 2007: 181).

Zhou e Hou (1999), no seu estudo das consequências do xia xiang no curso de vida dos jovens educados, encontraram as seguintes conclusões:
1) Os zhiqing casaram mais tarde e tiveram o filho único mais tarde do que os jovens que ficaram na cidade.
2) Quanto maior a estadia nas quintas e aldeias, mais negativamente o xia xiang influenciou a vida dos zhiqing. No entanto, os jovens que estiveram menos de seis anos nos campos mostraram, depois de em 1977 serem reintroduzidos os exames para admissão às universidades, taxas mais elevadas de frequência do ensino superior do que as dos jovens que permaneceram nas cidades.
3) Em 1993, os homens que haviam sido zhiqing tinham rendimentos médios mais baixos do que os homens que sempre permaneceram nas cidades. Contudo, no caso das mulheres a situação invertia-se: as antigas zhiqing ganhavam mais do que as raparigas não afetadas pelo xia xiang.

Numa leitura superficial, somos tentados a considerar que após a denúncia da RC ocorrida com a shanghen wenxue, a sociedade chinesa estaria já disposta, com esta vaga nostálgica, a valorizar pontos positivos que a última campanha maoista lhes trouxera e pacificar-se com a história recente. Segundo o estudo de Bryant (2005), escutar músicas populares durante o xia xiang era uma poderosa forma de os indivíduos evocarem as lembranças positivas, e apenas as positivas, dos tempos de zhiqing. E não custa notar em Yang a convicção de que esta nostalgia, com as suas saudades das experiências positivas que o xia xiang permitiu aos jovens que o viveram, era mais genuína, mais espontânea, mais generalizada, menos elitista e, em consequência, mais verdadeira na representação da forma como a RC era vista nos anos 1990 do que a shanghen wenxue. Em certa medida, como se o trauma expresso na cicatriz literária fosse apenas o trauma de poucos, enquanto a nostalgia refletia a boa experiência revolucionária da grande maioria. Esta argumentação vai no mesmo sentido de outras críticas que são feitas às memórias de trauma durante a RC, reforçando o caráter elitista e minoritário.

Davies (2005 e 2007), nos seus trabalhos sobre a nostalgia, partindo das exposições de fotografias de zhiqing e da publicação do livro Velhas Fotografias de Zhiqing, não fica apenas pela descrição do fenómeno nostálgico e das suas expressões culturais, mas apresenta-nos também (ao contrário de Yang) a crítica a esta nostalgia existente na própria sociedade chinesa. Esta corrente recusa
“qualquer tentativa de ver aspetos positivos no passado, especialmente apresentando exemplos da vida corrente, estudo e trabalho duro no campo. Afirmar estes aspetos do passado é afirmar o valor de uma experiência que foi inteiramente desastrosa para os zhiqing” (Davies, 2007: 187).
Já o escritor Feng Jicai diz da nostalgia “que não tem nenhum elemento de reflexão crítica. […] Não é algo da razão, mas um tipo de emoção. A nostalgia é capaz de pagar em coisas más e vê-las como belas.” (Davies, 2005: 101).

E, na verdade, este é o grande paradoxo da nostalgia. A geração que foi enviada para as aldeias e para as montanhas porque nas cidades não havia empregos estatais onde a colocar, que perdeu a possibilidade de ter uma educação, que sem educação não tinha a formação de base necessária numa economia capitalista e que, por isso, ficou desempregada, dedica-se a embelezar o passado e a criticar o presente. A frieza das decisões capitalistas, a procura do lucro e o sucesso económico como principal parâmetro de sucesso individual chocam certamente aqueles que foram educados nos valores maoistas. O alargamento das desigualdades sociais embate contra um sistema de valores assente na mais radical igualização promovida pelas sucessivas campanhas maoistas

Consideramos, assim, que a nostalgia não pode ser apenas apresentada como uma recusa do presente capitalista e um anseio (pelo menos emocional) pelos tempos maoistas. Desde logo porque há a crítica à nostalgia proveniente dos próprios zhiqing que referimos acima. E também porque a aceitação da nostalgia como uma crítica ao presente capitalista dos anos 1990 merece ser temperada. Como nota Bonnin (2007), a nostalgia pelo período da RC é oficialmente encorajada pelo PCC e usada para contrabalançar os eventos de Tian’anmen a 4 de junho de 1989. Como refere o historiador, “não é certamente por acidente que a primeira grande exposição sobre o movimento xiaxiang foi aberta com grande fanfarra em 1990, pouco depois dos eventos de junho de 1989, e para mais no Museu de História de Beijing, ou seja, em Tian’anmen.” (Bonnin, 2007: 63).

Por outro lado, a nostalgia trata-se de um embelezamento consciente do passado – e que contraria a genuinidade com que Yang, por exemplo, a apresenta. Davies (2005) descreve como no livro Velhas Fotografias de Zhiqing os editores não quiseram incluir histórias de antigos zhiqing desempregados, para não tirar a imagem positiva que se pretendia associar a este grupo de pessoas e para não desencorajar os leitores. Em outro trabalho, Davies refere a reação de um antigo zhiqing à exposição de fotografias que visitava: “Não havia assim tantos sorrisos naquele tempo” (crf. Davies, 2007: 173), confessa. O autor Wang Shuo ilustra bem a forma como a lembrança deste passado do xia xiang está longe da vivência verdadeira:
“Nas minhas impressões desses tempos, nós éramos bonitos, puros e saudáveis. Um amigo manteve algumas fotografias desses tempos, a preto e branco, daquelas tiradas com uma câmara de 135mm. Eu percebi que as minhas impressões estavam erradas apenas depois de ver as fotografias. Naquele tempo nenhum de nós era bonito, éramos escuros e magricelas, os nossos olhos sem brilho, teimosos, talvez até estúpidos. Pensava que éramos puros, mas de facto como poderíamos ser puros?” (cit. em Larson, 2009: 179).

Se é certo que a nostalgia é uma recusa da frieza capitalista, também nos parece este falsear do passado pode ser uma necessidade para lidar com o presente tanto quanto para lidar com o passado, que precisa de ser embelezado para ser integrado. Larson (2009) nota a necessidade de retirar algo de bom dos anos de sofrimento, medo e insegurança da RC, e mostra a nostalgia como uma escolha dos zhiqing, que estão decididos a convencerem-se que viveram um tempo de paixões juvenis e políticas em vez de um tempo que foi uma calamidade histórica. Ganito (2012), no seu estudo sobre o trabalho do artista contemporâneo Zhang Xiaogang, concretiza, a propósito das instalações de Zhang: “muitos dos objetos expostos apresentam distorções. Este exercício sugere que a distorção é um elemento central no processo de reconfigurações de identidade e de memória a seguir ao trauma coletivo” (Ganito, 2012: 176).

A distorção benigna do passado, a “estetização da fealdade do passado”, como lhe chamou o escritor Wang Xiaobo (cit. em Qin, 2006: 262), é, então, mais uma forma de lidar com o trauma da RC. Berry (2008) é ainda mais contundente, questionando se a nostalgia não será tão somente a criação de mais uma narrativa pós-traumática do xia xiang.

 

 

 

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