Vale bem a pena ler este post de Luís Menezes de Leitão, um dos melhores académicos que o país tem na área do direito e também um jurista com coragem de dizer o que pensa, coisa bem rara na profissão e, em geral, nas nossas elites. Recorde-se algumas verdades entretanto esquecidas:
1. O PGR resolveu não abrir um processo de inquérito criminal, como a lei determinava (art. 262º nº2 do Código de Processo Penal) e proferir os seus despachos num procedimento de natureza administrativa, o que constitui, por assim dizer, uma anomalia jurídica, aparentemente ilegal por violação daquela norma. Vários penalistas têm, por isso, lançado dúvidas sobre a opção do PGR e, em especial, sobre a validade dos despachos por ele proferidos, tendo em conta a possível ilegalidade da primeira decisão de não abrir inquérito criminal.
2. Pinto Monteiro incluiu e terá comentado nos seus despachos escutas que foram declaradas ilegais. Ao fazê-lo necessariamente originou o problema de tornar públicas conversas cujas gravações tinham sido mandadas destruir. Quanto a isto, a responsabilidade será do PGR: os cidadão têm o direito a conhecer os despachos de modo a verificarem se as decisões tomadas o foram de acordo com a lei e não em função de outros interesses.
Numa democracia, a seriedade e a legalidade das decisões judiciais não se presumem: conhecem-se e discutem-se, pelo que a justiça só é democrática enquanto os cidadãos a puderem controlar através do seu escrutínio, o que pressupôe, como condições necessárias desse controlo, a obrigatoriedade da fundamentação das decisões e da sua publicidade.
3. A inclusão em despachos de escutas ou outros meios de prova considerados inválidos é recorrente nas decisões judiciais, pese embora as boas regras da arte preconizem a sua redução ao mínimo necessário. E assim é, porque, por vezes, se tornar difícil fundamentar a invalidade desses meios de prova sem fazer alusão ao conteúdo dos mesmos.
Mas perante este dilema, a solução do legislador e a prática judicial é muito clara: a publicidade dos processos e das decisões judiciais sobrepôe-se à privacidade dos visados, logo aquelas deverão ser publicadas com as devidas salvaguardas (omissão dos nomes dos intervenientes, por exemplo e redução da publicitação de tais conteúdos a um mínimo indispensável). Que assim é – e que é assim que habitualmente se procede -, demonstram-no os milhares de processos penais publicados nas bases de dados do ministério da justiça.
4. Resumida a questão desta forma, vale a pena utilizar a máxima kantiana, avançada em forma de pergunta: será que podemos generalizar o comportamento do PGR neste processo de modo a poder dizer que esse é o comportamento que se esperaria numa eventual situação análoga com que um qualquer procurador se confrontasse num determinado processo? Posto assim o assunto, parece-me que a resposta terá de ser negativa: antes pelo contrário, esperar-se-ia desse procurador que abrisse um inquérito, procedesse às investigações necessárias e que, decidindo-se pelo arquivamento, tornasse pública a sua decisão, devidamente fundamentada, mas, tanto quanto possível, despojada de citações retiradas de escutas consideradas ilegais pelo juiz de instrução.
5. Por último, sobra ainda de toda a actuação do PGR no processo uma contradição aparentemente irresolúvel entre a defesa “a outrance” da privacidade dos visados no processo e a demora de mais de quatro meses na devolução das escutas ao Tribunal de Aveiro para que as mesmas fossem destruídas em cumprimento dos despachos do Presidente do STJ. E quanto a isso, o silêncio tem sido ensurdecedor tal como o foi relativamente à questão da ausência de inquérito quando a lei a isso aparentemente obrigava. O que verdadeiramente causa incómodo é que, depois de tantas explicações, esteja tudo por explicar.